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domingo, 2 de maio de 2021

A conversação

 


O dia cinzento e a chuva fininha escorrendo pela vidraça foram o convite ideal para revisitar o passado. 

Abri o baú de fotografias e dentre imagens posadas, falsos sorrisos, casamentos, batizados, formaturas, carnavais e viagens, um pequeno instantâneo em preto e branco chamou atenção.
 
Aliás, desde criança essa foto incomodava, talvez porque tenha capturado um momento familiar de grande apreensão que somente agora sou capaz de perceber com meu olhar adulto. 

Procuro nos detalhes da imagem pistas do local e período. Minha memória se aguça. A foto coloriza.

Anos 70. Num final de semana três irmãos encontram-se após um longo afastamento. Esse é um encontro raro, principalmente nesses tempos de tanques, armas, uniformes verde oliva e vigília. 

Enquanto eu e minha “mana” nos esbaldamos na piscina, os irmãos rompem o silêncio e são flagrados pela câmera de papai. 

Uma das mulheres é mamãe. Seu bronzeado contrasta com o cabelo louríssimo. Seus pés pequenos ainda não estam deformados pelos joanetes que hoje tanto a fazem sofrer. Ela está linda como sempre foi. 

Tio Alberto está sentado entre as irmãs, não se vê sua fisionomia porque no momento do registro voltou-se para minha Maducha à sua direita, ficando de costas para o fotógrafo. 

As irmãs olham o infinito tentando vislumbrar um futuro melhor para Alberto.

Meu tio, com seu jeitão expansivo e persuasivo, certamente está a contar-lhes seus planos políticos. O retorno ao partidão onde em 1947, sob sua legenda, concorreu a uma vaga de deputado estadual pelo Piauí. “Preciso levantar uma grande soma de dinheiro para financiar a luta” - diz ele entusiasticamente. 

Fala sobre a necessidade dos exilados, que há uma articulação entre militares, empresários e políticos pela anistia, do contato com um amigo, político influente, que prometeu-lhe um bom emprego quando a ditadura acabar, e por aí vai. 

As duas ficam cada vez mais perplexas e preocupadas. Preocupam-se com o destino do irmão politizado e perseguido.Perseguido por suas ideias revolucionárias. Perseguido por um destino cruel. Perseguido pela garrafa de cachaça.

Essa é minha última lembrança do meu tio vivo. Um homem inteligente, engraçado, sensível, sofrido, alcoólatra. 

Bebia porque sua mulher e filho morreram no incêndio do circo de Niterói nos anos 60. 

Bebia porque perdera seu emprego perseguido pela ditadura militar. 

Bebia porque tinha uma filha que sofria a perda da mãe e do irmão. 

Bebia porque queria morrer. 

Bebia para ficar próximo de sua Leocádia. 

Em 1974 finalmente juntou-se a ela.

Natal na Alsácia

Dia desses lembrei-me de um momento muito especial. Meu primeiro natal sem minha família. Em outro país, com outra família. Um belo e místico natal na Alsácia.

Como uma super mãe como eu foi parar em outro país, com outra família numa data tão simbólica? O ano de 2004 foi de muitas revelações e decisões, a começar por um reflexão sobre o meu papel como mãe.

Muito jovem senti as dores do parto. Talvez por isso tivesse grande necessidade de provar aos amigos e a família que reunia os atributos ideais de uma mãezinha: capacidade de cuidar, proteger e ensinar. Com o tempo comecei a perceber que educar uma criança era uma via de mão dupla. Nessa simbiose incorporei o melhor da personalidade de minhas filhas, e procurei dar o meu melhor. Respiração e inspiração. Sístole e diástole.

Como amava ser mãe expandi a maternidade para o nosso pequeno clã feminino. Proteger, agregar e contemporizar as fortes personalidades ao meu redor era meu lema.

Nesse ano recebi um convite tentador e inimaginável. Passar o natal na companhia de uma querida amiga que vivia na França com seu marido e sua filhinha de 5 anos. Na folga deles, no final daquele ano, alugaríamos uma casa em Wangenbourg-Engenthal, na Alsácia, e poderíamos percorrer de carro as belas cidadelas do entorno, todas ricamente enfeitadas para o Natal.

Passar o natal longe da família? Se minha amiga tivesse feito esse convite um ano antes certamente eu teria dito não, mas naquele momento minhas inquietudes impulsionaram-me a dizer SIM! Incorporei a personalidade forte e independente da primogênita, a ousadia e coragem da caçula. Resolvi aproveitar a ocasião e me expandir numa viagem sozinha antes de reunir-me com minha amiga e sua família. O roteiro escolhido foi Burgges, na Bélgica e Saint Malo, na França.

Como minhas “meninas" reagiriam  Minha mãe? Minha irmã, sobrinha e tia? Afinal eu nunca havia passado o natal longe do clã.

Além das reflexões acerca do meu desempenho familiar tive outro combustível impulsionando minha busca de aventura. No início desse mesmo ano recebi a visita inesperada de um amor do passado. Durante duas semanas experimentei uma montanha russa emocional com um desfecho intempestivo. Corte sem possibilidade de retorno. A ressaca amorosa durou meses e depois de muitas lágrimas e algumas doses de whisky  caí na real. Amadureci. Enterrei esse amor.

Voltando a viagem ... As meninas e minha irmã ficaram muito animadas com a idéia e me deram a maior força. A tia, a princípio ressabiada, alegrou-se quando soube que, apesar de minha ausência, a ceia de natal estava garantida. Mamãe ficou triste por ficar longe da filha mas conformou-se. E eu? Fiquei excitadíssima com a idéia de buscar a cura nas montanhas rosadas da Alsácia gelada.

O segundo semestre passou rápido e logo chegou o mês de dezembro. Saí do Rio dia 10 rumo a Paris onde reencontrei minha amiga querida. Foi um grande prazer ver seu progresso, sua casa linda e bem decorada, sua aptidão para os trabalhos manuais. Sua filhinha que eu havia conhecido aos três meses de idade estava agora com 5 anos. Uma menina linda e muito inteligente falando um português charmoso carregado nos erres. O marido de minha amiga foi muito acolhedor e encorajou-me a treinar com ele meu francês enferrujado.

O primeiro final de semana passamos juntas matando as saudades. Fomos ao Chateau de Vincennes, a Notre Dame, ao Quartier Latin  e passeamos despretensiosamente pelas ruas de Paris. No inverno parisiense fumaças saem das chaminés conferindo a cidade um ar de cinema noir. Nas esquinas outras fumaças aguçavam nossos sentidos. Castanhas assadas. Comer castanha quentinha nas ruas frias de Paris é um presente.

Depois de um final de semana muito agradável na manhã da segunda-feira parti para minha pequena/grande aventura. Sem lenço, com documento. Sem passagens ou reservas de hotel, afinal era parte do script não ter endereço fixo. De fixo só o destino. Paris-Brugges-Paris-Saint Malo-Paris. Peguei o mesmo trem de meus amigos. Eles desceram na estação de Vincennes e eu na Gare du Nord onde comprei meu bilhete para a Bélgica.

Lembram do francês enferrujado? Pois é, quase perdi meu trem para Brugges por conta da confusão que fiz entre o número da plataforma e o do carro do trem. A magia da viagem começou nesse exato momento. Dois homens trabalhando na plataforma prestaram atenção no meu ir e vir a procura do trem e me ajudaram. Um deles pegou minha mala e levou-me rapidamente para a plataforma em frente, de onde meu trem  partiu em menos de 3 minutos. Ufa!

Cheguei em Brugges por volta das quatro horas da tarde, pouco antes de escurecer. Não tinha reserva de hotel. Contando com meu senso de direção saí da estação e avistei, do outro lado da rua, um montão de bicicletas estacionadas. O centro histórico devia estar logo adiante, pensei. Alguns passos e estava no centro histórico de Brugges. Caminhei um pouco mais, virei a esquerda numa ruela e vi um pequeno e charmoso hotel. Entrei e registrei-me. O quarto era simples e acolhedor. Deixei a mala e parti para o reconhecimento.



A cada quadra a arquitetura mostrava-se mais e mais linda. O natal estava em toda parte, nas ruas , nas portas e janelas. Mas a surpresa maior estava guardada, ou melhor, embrulhada. Ao dirigir-me para a praça central Markt deparei-me com uma casa envolta num grande laço de fita vermelho. Embrulhada para presente. Um encanto.





Após ver algumas belas vitrines aconcheguei-me num bistrô onde comi uma pasta deliciosa acompanhada de um tinto honesto. A noite chegou rápida. Por precaução logo após a degustação retornei ao hotel. No caminho de volta as bicicletas antes estacionadas agora trafegavam. 
Com seus faróis acesos formavam desenhos de luz em meio a escuridão das vielas. Dormi feliz.

Pela primeira vez desfrutei da solidão que não é solitária. Sentia-me protegida na companhia de desconhecidos. Só e ao mesmo tempo acompanhada.

Três dias depois tomei um trem para Paris e de lá para Saint Malo. Cheguei a noitinha e entrei no primeiro hotel que avistei em frente à estação. Saint Malo é uma cidade irresistível, uma fortaleza medieval. Lá passei apenas dois dias, mas foram inesquecíveis. Caminhar pelas ruelas de paralelepípedos, apreciar o mar misterioso da Bretanha e degustar meu menu preferido "plat du fromage e vinho da casa" foram pequenos prazeres que me fizeram grande naqueles poucos dias. O Grand Aquarium foi uma outra diversão bem bacana. Lá joguei-me em grandes almofadas no chão enquanto tubarões e baleias nadavam ao meu redor, ao som de New age.

Ao contrário do que possam pensar, a música não era chata. Aliás nada me chateou na minha viagem comigo mesma, o único susto foi um vendaval. Ou melhor um vento mais forte porque pelo visto só assustou a mim, marinheira de primeira viagem.

Depois de cinco dias viajando sozinha sentia-me renovada. Feliz retornei a Paris, para a casa de minha amiga que me aguardava animadíssima para nossa viagem a Alsácia.


No dia seguinte partimos para nossa aventura. No carro conversávamos sobre tudo em vários idiomas. Português, francês e num dialeto inventado por mim, que misturava o melhor das duas línguas. Por conta desse novo vocabulário demos muitas risadas.

No final da tarde chegamos a nossa casinha, o gîte nº 1568 do Gîtes de France. Pequena e acolhedora. Eu e a filha de minha amiga ficamos juntas num quarto com uma sensacional vista das montanhas. No dia seguinte acordei e fui direto para a janela. A luz fraca do Sol coloriu de rosa a neve branca. Senti-me grata por desfrutar daquele cartão postal com pessoas tão queridas.


Vista da janela


Os dias que precederam o Natal foram de passeios e deslumbramento. Fomos a um castelo medieval espetacular, o château Haut-Kœnigsbourg. Compramos artesanatos nas feiras natalinas. Em outro dia tomamos vinho quente para nos aquecer. Numa igreja surpreendi-me com a decoração interna com pequenos pinheiros que pendiam do teto ornamentados com maçãs vermelhas, símbolo do jardim do Éden. Sem dúvida fizemos uma viagem no tempo.

Na tarde do dia 24 busquei um orelhão para ligar para casa. Nessa ocasião não tínhamos celulares o que tornava as ligações telefônicas verdadeiros eventos. Foi com emoção que falei com as mulheres da minha vida. Disse as minhas filhas que antes da meia noite faria uma mentalização e que, apesar da distância física, estaríamos juntas em pensamento.

De volta para casa preparamos a ceia natalina. Kassler, batatas, frutas secas, vinho e de sobremesa um delicioso pavê. Antes da meia noite sentamo-mos para o jantar sagrado, pois o marido de minha amiga pretendia assistir a missa do Galo na igrejinha da cidade.

O jantar foi uma festa de Babette. Magia, união, comunhão e culinária. No momento da oração um sentimento extraordinário de amor a minha amiga e sua família expandiu-se. Esse amor construiu uma ponte com minha família no Brasil. Juntei-me a elas com todo meu amor e gratidão. Somos todos um.

Sem televisão ou jornais nossa estada na Alsácia transportou-nos no tempo, um tempo de simplicidade e harmonia. De volta a Paris e à rotina ligamos a TV e com perplexidade soubemos da tragédia na Indonésia.

Foram dias de muita tristeza com as notícias das centenas de mortos num dos maiores desastres naturais da História. Oramos pelas vítimas, suas famílias e amigos. Conversamos muito sobre nossos temores, o futuro ecológico do planeta, a possibilidade de guerras, enfim, aquela tragédia nos fez pensar e desejar um futuro melhor.

Acredito que dentre tantos motivos a grande onda da tsunami de 2004 trouxe, quatro anos depois, minha amiga de volta ao Brasil.

O natal na Alsácia foi uma experiência rica em misticismo, amor, amizade, auto conhecimento e a certeza de que somos capazes de materializar nossos sonhos.

Aos Boissier minha gratidão e amizade por dias inesquecíveis.



domingo, 10 de março de 2019

Teresópolis, 10 de março de 2019


Hoje celebramos o nascimento de Phriné. Seu aniversário de vida nesse planeta. Da vida que ela viveu bem vivida e gerou duas vidas dando continuidade ao seu clã.

Com as asas da memória volto num tempo distante. Estamos de férias e ela me encanta. Quero ser como ela. Aliás, por muito tempo sentia que éramos uma só.

A imitava em tudo. Posando para fotos. Na vaidade. Na sua busca pelo auto aperfeiçoamento e pela espiritualidade. Não a espiritualidade dos dogmas que engessam, mas aquele aprendizado milenar dos grandes pensadores e mestres.

Ah, como era gostoso estar com ela. As vezes me provocava. E como. Tudo era um teste, afinal. O grande teste do amor incondicional dentro do plano cósmico a nós proposto nos papéis de mãe e filha. Enfrentamentos e amor. Enfrentamentos com amor. Amor.

Minha memória retorna a diversos momentos. Choros emocionados. Riso. Carnaval. A marchinha carnavalesca  de sua autoria "Laika". Férias. Sessões de cinema e teatro. Praia, muita praia. Leitura conjunta (ela gostava muito de dividir sua leitura em voz alta, e hoje faço a mesma coisa !!!). As brincadeiras de desafiá-la com palavras difíceis do dicionário (além de conhecer todas as definições nos ensinava os prefixos gregos e latinos). Praticando sua posição de yoga preferida (Sirsana) que segundo ela irrigava o cérebro, ajudava na circulação, além de lhe trazer bem estar e equilíbrio. Cantando. Fazendo troça com as musiquinhas natalinas. Suas piadas picantes...

Mamãe, onde você estiver receba nossa vibração amorosa e gratidão por tudo que nos proporcionou. Somos Bemvindos na alma e no coração. Esse nome diz muito sobre nossa família. Sobre o bem que recebemos e passamos adiante. Esse clã vivo, amoroso, e entrelaçado de histórias se fortaleceu com seu exemplo.

Parabéns por uma vida linda cheia de desafios e muitos sucessos.  Sua trajetória sempre será lembrada como a trajetória de uma mulher determinada, uma alma que lutou bravamente para
livrar-se dos rótulos acachapantes (você adorava essa palavra), linda, irrequieta, inteligente e espiritualizada.



quinta-feira, 16 de março de 2017

Jeremias

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A medida que o elevador descia pelo buraco estreito e fundo, a luz do dia tornava-se um pequeno ponto esmaecido e distante.

Todo dia era tudo igual. As três e meia Jeremias levantava pegava sua caneca de alumínio amassada e encardida. Colocava três dedos de Corote, sua bebida e principal refeição nos últimos cinco anos. Fechava os olhos e devaneava. Pensava em Emerinda. Como estaria ela agora? Sempre que pensava em Emerinda conseguia ver seu rosto. Somente o rosto. E o sorriso no rosto. Sorriso de gente sincera. Um grande diastema enfeitava o sorriso sincero de Emerinda. O cabelo? Como era mesmo o cabelo?
Jeremias já não sabia mais se era curto, liso ou crespo. A única coisa que ele sabia era do sorriso sincero. A grande janela entre os dentes brancos. Essa memória era tão boa que ele conseguia até sentir o cheiro de café da boca de Emerinda. O café que ele não tomava mais.
Mas ele não tinha só lembrança boa não. Logo a vista turvava e ele via o que não queria ver. A imagem do cavalo negro. Lindo. Mangalarga. Fugido à galope da fazenda do Sinhô Amadeu. Num galope selvagem, o mais selvagem que ele jamais vira. O puro sangue atropelou Emerinda, que não tinha sangue puro como o cavalo do Sinhô. Era fraca a Emerinda. Prenha estava do seu único filho que não vingou. Chegou mesmo a nascer. Morto. Ainda teve Jeremias que pagar o enterro dos dois. Pegou empréstimo com Sinhô Amadeu. Um ano inteirinho de trabalho na lavoura. Sol a Sol. Pagou tudo e sumiu na vida. O pouco que sobrou jogou. Perdeu. Ganhou. E perdeu de novo. Foi aí que conheceu a branquinha. Ele gostava da branquinha. Fazia esquecer de tudo. Pena que ele estava esquecendo até do cabelo de Emerinda.
Há léguas desse tempo. No tempo presente chegou Jeremias às Minas. As Gerais. Lugar bonito. Cheio de verde. E de fortuna. Jeremias buscou uma mina para cavar a rocha. Ficou longe das fazendas. Longe dos cavalos. O pouco que ganhava pagava sua pinga.
E devagar passavam os dias. Um dia na mina era igual a noite. A noite fora da mina era mais clara que a luz do dia na mina. E Jeremias nada via. Dia ou noite. Era tudo igual. A aguardente girava na cabeça. Girava mundo. E os dias passavam mais devagar ainda.
Outro dia. Três e meia. Como de costume pegou a caneca de alumínio encardida. A Corote estava vazia. Partiu para a mina sozinho sem a branquinha. Tudo estava diferente. O elevador descia e a luz aumentava. Esfregou os olhos. A luz ofuscou. Jeremias nada entendeu. De onde vem tanta luz, sô!
Chegou no final do buraco fundo. Pegou sua pequena picareta e seguiu a luz. Ninguém o seguiu. Sentou-se no chão e bateu na pedra. Bateu. E bateu. E bateu. Entrou em transe. De fome e de sede. O transe da abstinência. Bateu na pedra de olhos fechados. E com os olhos fechados viu Maria. Sim, a Virgem. Ela apontou a direção. Jeremias levantou-se deu três passos e bateu na rocha. E bateu. E bateu. E de novo. E outra vez.
Uma luz mais forte e brilhante surgiu. Um pequeno ponto. Muito brilhante. Ele segurou pela primeira vez um diamante. Enfiou no bolso. Bateu na rocha. De novo. E de novo. E outra vez. Uma pepita de ametista saltou na sua mão. Levou pro patrão. E correu. Correu léguas. Foi pra longe. A pé e feliz.
Na cidade grande trocou seu diamante. Comprou camisa, sapato e terno de missa. Se curou do medo da morte. Comprou um cavalo marrom. Bonito de crina preta. Montado nele foi com rumo certo. Ao encontro de Maria. Sim, da Virgem. Gratidão, era seu nome agora. Jeremias Gratidão.
Chegou em Aparecida. Lugar da aparição de Maria. Sim, da Virgem. Outra Maria apareceu. Com um sorriso sincero. Uma grande janela no sorriso. Cabelos cor de mel, olhos de cobra. Enfeitiçou.
Agora Jeremias tem pouso certo. Tem família. Café com pão. E criança arrodeando ele. E cavalo bonito. Não tem medo. Só gratidão.




Conto inspirado na letra Romaria,
 de Renato Teixeira




É de sonho e de pó, o destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo
É de laço e de nó, de gibeira o jiló
Dessa vida cumprida a sol
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
O meu pai foi peão, minha mãe, solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
Em busca de aventuras
Descasei, joguei, investi, desisti
Se há sorte eu não sei, nunca vi
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Me disseram, porém, que eu viesse aqui
Pra pedir em romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar, só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
Sou caipira, Pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida


https://www.youtube.com/watch?v=30vGAwElGjg


quarta-feira, 15 de março de 2017

Carta para Dona Silvia

Dona Silvia,

Talvez não se lembre de mim mas para situar-lhe voltarei no tempo. Tenho quase cinco anos e acabo de chegar no Mallet Soares onde você alfabetiza as crianças no primeiro ano primário. O ano? 1964.

Eu não tinha idéia do que acontecia ao nosso redor, talvez por isso sua fisionomia estivesse sempre tão carregada. Você não sorria nunca. Desculpe a minha sinceridade mas você era muito antipática. Será que tinha algum filho comunista? Ou o marido? Ou um tio? Vai ver que seu pai era militar? Não sei o que estava se passando com a sua vida, mas vou falar-lhe um pouco sobre mim, afinal você foi minha primeira professora e suas atitudes (ou a falta delas) influenciaram a minha vida.

Sou tímida e inteligente. Meu raciocínio não é rápido, como o de algumas crianças. Tenho percepção apurada do ambiente ao meu redor, esse é o meu ponto forte, mas ninguém na escola valorizava esse tipo de inteligência (nem sei se valorizam hoje em dia).

Aprendi a prestar atenção na atitude de crianças e adultos e cataloguei seus comportamentos na minha mente. Nem sei dizer como fiz isso, mas fiz. Sou uma observadora. A medida que aumentei meu arquivo pessoal, me distanciei dos próprios sentimentos. Talvez tenha agido dessa forma para me proteger, também pudera, o ambiente escolar era muito austero. Sei dos outros e não sei de mim (that`s my problem).

Na entrada da escola, antes de tocar a sineta, eu pulava elástico, jogava ioiô e trocava figurinhas com os meninos. Nesse tempo colecionava o álbum de figurinhas Holanda. Poxa, como eu gostava desse álbum! Ele tratava de assuntos gerais, mas o que eu mais gostava era da cultura dos povos de outros países, era o máximo! Também gostava de observar o tatu bola do jardim. Sabe qual é? Aquele bichinho que se encolhia em torno de si mesmo e virava uma bolinha.

Um dia lhe pedi para ir ao banheiro e você mandou esperar. Esperar o quê? O banheiro das meninas era grande, tinha umas quatro portas e nenhuma tinha pedido para ir ao banheiro. Não deu para segurar o xixi, aliás o xixi não dava para segurar em lugar nenhum. Quase todo dia acordava molhada, mamãe não lhe contou?

Você com certeza não se lembra, mas naquele dia (graças a sua falta de sensibilidade) fiz xixi na calcinha e fui alvo da gargalhada da gurizada. Aquilo me matou por dentro. Daquele dia em diante fiquei atenta ao ambiente, perdi minha naturalidade. As crianças eram legais e cruéis, e você, ah você nem se importou, nem mandou eles se calarem ou me pedirem desculpas. Você não se colocou no meu lugar. A partir desse dia virei um tatu bola.

Sua preocupação era ensinar o “vovô viu a uva”, e o elementar “2 + 2 é igual a ...”. As crianças não estavam nem aí para o seu blá blá blá, você não tinha nenhuma criatividade para nos ensinar, aprender era a coisa mais desinteressante do mundo, nem sei como conseguimos passar de ano.

O ano de 64 foi longo para mim, os dias passavam devagar e você continuava com a mesma cara amarrada, parecia não gostar do que fazia. Não me sentia a vontade contigo e, confesso, tinha medo de você. Sendo assim, evitava falar. Dúvidas? Se as tive, tratei de resolver (ou não), mas passei para o segundo ano e para uma professora ainda pior, D. Clélia.

Falta de sorte ou efeito dominó, a ditadura de fora incentivava a ditadura do colégio. A sineta tocava a gente fazia fila e cantava o hino nacional. As cantigas de roda se distanciavam cada vez mais do nosso cotidiano. Monotonia.

Lembro-me do dia em que o Henrique, menino magrinho e de olhar triste que acabara de retornar depois de uma ausência prolongada, foi subestimado por você. Estávamos no mês de agosto e fazíamos alguma atividade pelo Dia dos Pais e o menino começou a chorar porque seu pai tinha morrido. Será possível que você não soubesse de um fato como esse com seu aluno? Você não foi carinhosa com o Henrique, apenas o retirou da sala para que as outras crianças não soubessem o que tinha acontecido, como se as crianças fossem estúpidas e não pudessem participar da dor do Henrique. Lembro-me do olhar do menino, os cílios longos, os olhos castanhos avermelhados de tanto chorar. O Henrique era um menino muito sensível, eu me solidarizei com ele e nunca pude dizer-lhe. Aquilo me marcou profundamente.

Um dia mamãe colocou laranjada na minha merendeira. Acho que estava estragada porque vomitei. Você não gostou nem um pouco, lembra? Pensando bem não sei se vomitei uma laranjada “passada”, ou se vomitei a sua falta de sensibilidade. Eu percebia tudo, você só dava atenção às meninas engomadas. Mamãe não engomava meu uniforme. Eu era uma menina simples. Não era filha de militar , de engenheiro ou de professor (naquele tempo os professores não eram marginalizados como agora). Papai era contador e mamãe funcionária pública. Eles faziam das tripas coração para pagar um colégio particular para que eu tivesse uma boa educação.


Apesar de tudo eu fui muito feliz na escola. O primário foi meio infernal. Depois da D. Clélia tivemos uma professora-mala D. Zoraida. Aportuguesaram o nome de origem germânica (Zoraide), mas não conseguiram apagar seu instinto hitlerista. Alguma coisa aconteceu no ano seguinte porque, para nossa infelicidade, D. Zoraida foi nossa professora no quarto ano também! No quinto fui aos céus com D. Regina, uma professora mais velha, doce e atenciosa. Com ela finalmente aprendi matemática.

Tenho cinqüenta e quatro anos, mais idade do que você tinha quando me alfabetizou. A minha criança ralhou contigo, mas a adulta relativizou suas atitudes. Hoje entendo que a sua frieza não era uma prerrogativa somente sua, mas estava presente em todo lugar. Eram tempos difíceis. Tempos de silêncio, tempos de bater continência. Nesse contexto crescemos, vendo e fingindo não enxergar, ouvindo tendo que se calar, obedecendo com vontade de contestar. Assim fomos moldados e com essa forma fomos para o mundo.

A menina, colecionadora do álbum Holanda e arquivista de comportamentos humanos, graduou-se em História e trocou o arquivamento dos comportamentos pelos documentos históricos. Agora, prestes a se aposentar, prepara-se para voltar aos arquivos do seu mundo interior, buscar aqueles comportamentos catalogados e usar sua fantasia de menina para criar e contar histórias, brincar com as palavras, arriscar e se reinventar.

Sem mágoas, receba um abraço de sua aluna

Sandra Pinto