Dia
desses lembrei-me de um momento muito especial. Meu primeiro natal
sem minha família. Em outro país, com outra família. Um belo e
místico natal na Alsácia.
Como
uma super mãe como eu foi parar em outro país, com outra família
numa data tão simbólica? O ano de 2004 foi de muitas revelações e
decisões, a começar por um reflexão sobre o meu papel como mãe.
Muito
jovem senti as dores do parto. Talvez por isso tivesse grande
necessidade de provar aos amigos e a família que reunia os atributos
ideais de uma mãezinha: capacidade de cuidar, proteger e ensinar.
Com o tempo comecei a perceber que educar uma criança era uma via de
mão dupla. Nessa simbiose incorporei o melhor da personalidade de
minhas filhas, e procurei dar o meu melhor. Respiração e
inspiração. Sístole e diástole.
Como
amava ser mãe expandi a maternidade para o nosso pequeno clã
feminino. Proteger, agregar e contemporizar as fortes personalidades
ao meu redor era meu lema.
Nesse
ano recebi um convite tentador e inimaginável. Passar o natal na
companhia de uma querida amiga que vivia na França com seu marido e
sua filhinha de 5 anos. Na folga deles, no final daquele ano,
alugaríamos uma casa em Wangenbourg-Engenthal, na
Alsácia, e poderíamos percorrer de carro as belas cidadelas do
entorno, todas ricamente enfeitadas para o Natal.
Passar
o natal longe da família? Se minha amiga tivesse feito esse convite
um ano antes certamente eu teria dito não, mas naquele momento
minhas inquietudes impulsionaram-me a dizer SIM! Incorporei a
personalidade forte e independente da primogênita, a ousadia e
coragem da caçula. Resolvi aproveitar a ocasião e me expandir numa
viagem sozinha antes de reunir-me com minha amiga e sua família. O
roteiro escolhido foi Burgges, na Bélgica e Saint Malo, na França.
Como
minhas “meninas" reagiriam Minha mãe? Minha irmã, sobrinha
e tia? Afinal eu nunca havia passado o natal longe do clã.
Além
das reflexões acerca do meu desempenho familiar tive outro
combustível impulsionando minha busca de aventura. No início desse
mesmo ano recebi a visita inesperada de um amor do passado. Durante
duas semanas experimentei uma montanha russa emocional com um
desfecho intempestivo. Corte sem possibilidade de retorno. A ressaca
amorosa durou meses e depois de muitas lágrimas e algumas doses de whisky caí na real. Amadureci. Enterrei esse amor.
Voltando
a viagem ... As meninas e minha irmã ficaram muito animadas com a idéia
e me deram a maior força. A tia, a princípio ressabiada, alegrou-se quando soube que, apesar de minha ausência, a ceia de natal
estava garantida. Mamãe ficou triste por ficar longe da filha mas
conformou-se. E eu? Fiquei excitadíssima com a idéia de buscar a
cura nas montanhas rosadas da Alsácia gelada.
O
segundo semestre passou rápido e logo chegou o mês de dezembro. Saí
do Rio dia 10 rumo a Paris onde reencontrei minha amiga querida. Foi
um grande prazer ver seu progresso, sua casa linda e bem decorada,
sua aptidão para os trabalhos manuais. Sua filhinha que eu havia conhecido aos três meses de idade estava agora com 5 anos. Uma menina linda
e muito inteligente falando um português charmoso carregado nos
erres. O marido de minha amiga foi muito acolhedor e encorajou-me a treinar com ele meu francês enferrujado.
O
primeiro final de semana passamos juntas matando as saudades. Fomos
ao Chateau de Vincennes, a Notre Dame, ao Quartier Latin e passeamos despretensiosamente pelas ruas de Paris. No inverno parisiense
fumaças saem das chaminés conferindo a cidade um ar de cinema noir.
Nas esquinas outras fumaças aguçavam nossos sentidos. Castanhas
assadas. Comer castanha quentinha nas ruas frias de Paris é um
presente.
Depois
de um final de semana muito agradável na manhã da segunda-feira parti para minha pequena/grande aventura. Sem lenço, com documento.
Sem passagens ou reservas de hotel, afinal era parte do script não
ter endereço fixo. De fixo só o destino. Paris-Brugges-Paris-Saint Malo-Paris. Peguei o mesmo trem de meus amigos. Eles desceram na
estação de Vincennes e eu na Gare du Nord onde comprei meu bilhete
para a Bélgica.
Lembram
do francês enferrujado? Pois é, quase perdi meu trem para Brugges
por conta da confusão que fiz entre o número da plataforma e o do
carro do trem. A magia da viagem começou nesse exato momento. Dois
homens trabalhando na plataforma prestaram atenção no meu ir e vir
a procura do trem e me ajudaram. Um deles pegou minha mala e levou-me rapidamente para a plataforma em frente, de onde meu trem partiu em
menos de 3 minutos. Ufa!
Cheguei
em Brugges por volta das quatro horas da tarde, pouco antes de
escurecer. Não tinha reserva de hotel. Contando com meu senso de
direção saí da estação e avistei, do outro lado da rua, um montão de bicicletas
estacionadas. O centro histórico devia estar logo adiante, pensei.
Alguns passos e estava no centro histórico de Brugges.
Caminhei um pouco mais, virei a esquerda numa ruela e vi um pequeno e
charmoso hotel. Entrei e registrei-me. O quarto era simples e
acolhedor. Deixei a mala e parti para o reconhecimento.
A
cada quadra a arquitetura mostrava-se mais e mais linda. O natal
estava em toda parte, nas ruas , nas portas e janelas. Mas a surpresa
maior estava guardada, ou melhor, embrulhada. Ao dirigir-me para a
praça central Markt deparei-me com uma casa envolta num grande laço
de fita vermelho. Embrulhada para presente. Um encanto.
Após
ver algumas belas vitrines aconcheguei-me num bistrô onde comi uma
pasta deliciosa acompanhada de um tinto honesto. A noite chegou
rápida. Por precaução logo após a degustação retornei ao hotel.
No caminho de volta as bicicletas antes estacionadas agora trafegavam.
Com seus faróis acesos formavam desenhos de luz em meio a escuridão
das vielas. Dormi feliz.
Pela
primeira vez desfrutei da solidão que não é solitária. Sentia-me
protegida na companhia de desconhecidos. Só e ao mesmo tempo acompanhada.
Três
dias depois tomei um trem para Paris e de lá para Saint Malo.
Cheguei a noitinha e entrei no primeiro hotel que avistei em frente à
estação. Saint Malo é uma cidade irresistível, uma fortaleza
medieval. Lá passei apenas dois dias, mas foram inesquecíveis.
Caminhar pelas ruelas de paralelepípedos, apreciar o mar misterioso da
Bretanha e degustar meu menu preferido "plat du fromage e vinho da
casa" foram pequenos prazeres que me fizeram grande naqueles poucos dias. O Grand Aquarium foi uma outra diversão bem bacana. Lá
joguei-me em grandes almofadas no chão enquanto tubarões e baleias
nadavam ao meu redor, ao som de New age.
Ao
contrário do que possam pensar, a música não era chata. Aliás
nada me chateou na minha viagem comigo mesma, o único susto foi um
vendaval. Ou melhor um vento mais forte porque pelo visto só
assustou a mim, marinheira de primeira viagem.
Depois
de cinco dias viajando sozinha sentia-me renovada. Feliz retornei a
Paris, para a casa de minha amiga que me aguardava animadíssima para
nossa viagem a Alsácia.
No
dia seguinte partimos para nossa aventura. No carro conversávamos
sobre tudo em vários idiomas. Português, francês e num dialeto
inventado por mim, que misturava o melhor das duas línguas. Por
conta desse novo vocabulário demos muitas risadas.
No
final da tarde chegamos a nossa casinha, o gîte nº 1568 do Gîtes
de France. Pequena e acolhedora. Eu e a filha de minha amiga ficamos
juntas num quarto com uma sensacional vista das montanhas. No dia
seguinte acordei e fui direto para a janela. A luz fraca do Sol
coloriu de rosa a neve branca. Senti-me grata por desfrutar daquele
cartão postal com pessoas tão queridas.
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Vista da janela |
Os
dias que precederam o Natal foram de passeios e deslumbramento. Fomos
a um castelo medieval espetacular, o château Haut-Kœnigsbourg. Compramos artesanatos nas feiras
natalinas. Em outro dia tomamos vinho quente para nos aquecer. Numa
igreja surpreendi-me com a decoração interna com pequenos pinheiros
que pendiam do teto ornamentados com maçãs vermelhas, símbolo do
jardim do Éden. Sem dúvida fizemos uma viagem no tempo.
Na
tarde do dia 24 busquei um orelhão para ligar para casa. Nessa
ocasião não tínhamos celulares o que tornava as ligações
telefônicas verdadeiros eventos. Foi com emoção que falei com as
mulheres da minha vida. Disse as minhas filhas que antes da meia
noite faria uma mentalização e que, apesar da distância física,
estaríamos juntas em pensamento.
De
volta para casa preparamos a ceia natalina. Kassler, batatas, frutas
secas, vinho e de sobremesa um delicioso pavê. Antes da meia
noite sentamo-mos para o jantar sagrado, pois o marido de minha amiga pretendia assistir a missa do
Galo na igrejinha da cidade.
O
jantar foi uma festa de Babette. Magia, união, comunhão e culinária.
No momento da oração um sentimento extraordinário de amor a minha
amiga e sua família expandiu-se. Esse amor construiu uma ponte com
minha família no Brasil. Juntei-me a elas com todo meu amor e
gratidão. Somos todos um.
Sem
televisão ou jornais nossa estada na Alsácia transportou-nos no
tempo, um tempo de simplicidade e harmonia. De volta a Paris e à rotina ligamos a TV e com perplexidade soubemos da tragédia na
Indonésia.
Foram
dias de muita tristeza com as notícias das centenas de mortos num
dos maiores desastres naturais da História. Oramos pelas vítimas,
suas famílias e amigos. Conversamos muito sobre nossos temores, o
futuro ecológico do planeta, a possibilidade de guerras, enfim,
aquela tragédia nos fez pensar e desejar um futuro melhor.
Acredito
que dentre tantos motivos a grande onda da tsunami de 2004 trouxe,
quatro anos depois, minha amiga de volta ao Brasil.
O
natal na Alsácia foi uma experiência rica em misticismo, amor,
amizade, auto conhecimento e a certeza de que somos capazes de
materializar nossos sonhos.
Aos Boissier minha gratidão e amizade por dias inesquecíveis.